Tertúlia "Nazaré no Feminino" promoveu debate muito participado



Reflectir sobre o papel da mulher da (na) Nazaré e implicar os próprios agentes (entenda-se comunidade) nessa reflexão, foram os objectivos da tertúlia “Nazaré no feminino”, que decorreu no dia 8 de Março, no Auditório da Biblioteca Municipal da Nazaré, em colaboração com a Universidade Sénior da Nazaré.

Muito se tem discorrido sobre a importância da mulher nesta comunidade piscatória, a ponto de alguns autores a considerarem matriarcal, ou, segundo uma interpretação mais científica, matrifocal – “tipo de organização familiar em que a mulher assume o papel de chefe de família” (Trindade, 2009: 84).

Neste evento, a projecção de várias fotografias e textos literários elencavam as funções tradicionalmente atribuídas à mulher da Nazaré (e, por norma, a todo um litoral piscatório). A “mulher-mãe”, a “menina-mulher”, a “mulher modelo de beleza”, a “mulher sofredora”, a “mulher da fé e superstição”, a “mulher da conversa e exuberância”, a “mulher administradora do lar” (que chama a si a gestão da economia familiar e todas as tarefas relacionadas com o pescado, desde a sua chegada à praia), …
Terá sido o escritor Raul Brandão quem muito contribuiu, na literatura, para a exaltação do poder feminino na comunidade nazarena, nas suas páginas d' Os Pescadores (1923). Para o autor, “a mulher da Nazaré é a alma desta terra. (…) Da praia para cima só elas põem e dispõem”. Este louvor, à mulher que trabalha, infatigável, define-se por oposição ao homem que, chegado a terra, se entregava a uma vida de taberna.

No entanto, é legítimo discutir se esta distinção por género se restringe à Nazaré ou se foi comum a todo um litoral piscatório; se este entendimento foi alterado nas últimas décadas perante as transformações do próprio universo piscatório e da ocupação económica do tecido social nazareno; se a função de “governar a casa” era um “poder feminino adquirido” ou se não passava de uma “autoridade consentida” no binómio social homem / mulher, correlativo a mar / terra.
Para o antropólogo José Maria Trindade (2009: 87), a importância da mulher da Nazaré na vida social e familiar e a sua exuberância de atitude, vestuário e linguagem, contrastam, de facto, com a postura do pescador em terra, mais discreta. O interessante estudo promovido por Chistine Escallier (1999: 306), por sua vez, concluía que “as mulheres governam, mas são os homens que têm o poder”.


De acordo com a tradicional percepção de uma divisão sexual do trabalho – “pesca de homem / peixe de mulher” (Amorim, 2005: 659), a omnipresença das mulheres nazarenas nas actividades terrestres da economia de pesca foi, na verdade, fundamental durante muito tempo. Todas as fases da cadeia técnica, de desembarque do produto até ao consumo, passando pela sua transformação e comercialização, eram feitas pelas mulheres.
O trabalho executado na praia, o desempenho reprodutivo e a tomada de decisões / gerir os bens gizam o “perfil da mulher da praia, que a coloca como o principal agente de organização do trabalho” (Amorim, 2005: 671). A mulher era “determinante na sobrevivência familiar”.
A construção do Porto de Abrigo (1985), a modernização das pescas e a mudança sócio-económica dos últimos 30 anos, que transformou a Nazaré numa estância essencialmente turística e de serviços, mais do que piscatória, resultou no distanciamento das mulheres de um processo tradicionalmente seu. A mulher da Nazaré volta-se, então, para o turismo e para os serviços, teve a oportunidade de estudar e de seguir as suas carreiras profissionais.
Apesar destas transformações, as mulheres permanecem como elemento centralizador da família (Escallier, 2004: 24).

“Temos de ser nós mulheres a mudar o que ainda não mudou” na igualdade entre os géneros. Esta foi a mensagem deixada pela socióloga Maria Toscano, docente no Instituto Superior Miguel Torga, em Coimbra. A 8 de Março de 2010, cem anos do Dia Internacional da Mulher e permanece a questão: o que valeu a pena? O que ainda não foi feito?
Advém a conclusão de que a igualdade de oportunidades entre os géneros exige uma mudança da própria mulher enquanto educadora. Aceitando a diferença entre homem e mulher, que é incontestável!!, deve-se reconhecer que esta não impõe desigualdades. Apesar destas permanecerem graças ao contributo da própria mulher quando transmite e conserva determinados modelos de conduta. Com efeito, a relação da “mulher-esposa” com o elemento masculino da família não deixa de ser assumir como a continuidade da função “mulher-mãe”, daquela que cuida, que trata…
Segundo a socióloga, na Nazaré do século XXI, a modernidade é incontornável, mas tem de se encaixar na tradição. E para falar sobre a tradição do “ser mulher da Nazaré” foram convidadas, pela organização, as nazarenas Lurdes Petinga Almeida e Júlia Salvador.





Nascida nos anos 1960, professora de História, de “alunos que já não fazem ideia de como viviam os seus pais”, Lurdes Petinga começou por relembrar a sua própria história de vida, que não podia ser contada sem falar das mulheres da sua infância, umas “lutadoras”. Filha de pai pescador e mãe peixeira, cresceu entre a gente da Praia. Para si, a mãe, e sobretudo a avó, são uma referência. Mas, cedo percebeu que a lida do peixe e o trabalho doméstico “não eram para ela”. Sabia que “queria fazer outras coisas na vida” e, incentivada por outra mulher – uma professora, conseguiu vencer barreiras e prosseguir os estudos numa altura em que poucas o faziam.
Hoje, como professora, não deixa de fazer sentir às suas jovens alunas que devem saber muito bem o que querem para si; que devem saber aproveitar a oportunidade de estudar, dificilmente acessível na geração dos seus avós. Por outro lado, com orgulho pela sua herança familiar, admite que naturalmente reproduz o modelo em que foi educada.

Júlia Salvador é representante de uma geração anterior e, ao contrário de Lurdes Petinga, os seus estudos ficaram pela 4ª classe. Desde os 11 anos, teve de ajudar a mãe “na vida do peixe”. Aos 14 anos, já ia sozinha para Caldas da Rainha vender o peixe com outras mulheres. “Ia ao estendal”, salgava peixe para aguentar o Inverno, ia “vender fora de corrida” e ainda fazia o trabalho doméstico. O pai tinha uma arte xávega; trabalhava sobretudo no Verão, pelo que era pouco o seu sustento. A mãe, sempre muito poupada, ensinou-lhe que o importante era amealhar, fazer o enxoval e “casar bem”. Começou a aprender a costura, mas a esperança de ser costureira foi abandonada perante a dificuldade de a conciliar com a lida do peixe.
O “grande desgosto por não ter estudado” levou-a a garantir os estudos aos seus três filhos. Assim como Lurdes Petinga, estes beneficiaram da democratização da escola no pós-25 de Abril, embora as raparigas continuassem a ser apontadas pelo facto de prosseguirem os seus estudos.
Se se viam com dificuldades? “Não, porque não havia mais nada”. Com uma vida marcada por árduos momentos, Júlia Salvador reconheceu que deve à mãe a força que lhe permitiu aguentar as dificuldades. Foi ela a “grande mestra”.

Um debate muito participado demonstrou a identificação da plateia com as experiências destas mulheres e, sobretudo, revelou que, hoje, à Nazaré, interessa a discussão das problemáticas sociais contemporâneas, como a ausência da figura maternal em casa, a gravidez na adolescência, as “meninas que querem ser mulheres”, a educação sexual nas escolas, a exploração da imagem corporal da mulher e outros desafios que se colocam à mulher e à sociedade em geral.

A tertúlia “Nazaré no Feminino” inseriu-se no projecto Conversas de Algibeira, uma parceria entre o Museu Dr. Joaquim Manso e a Universidade Sénior da Nazaré, que envolverá várias disciplinas na realização de trabalhos inspirados na tradicional “algibeira” nazarena, “Objecto do Mês” de Março, exposto no Museu. Culminará numa exposição conjunta, no final do ano lectivo.


Contou com a colaboração da Biblioteca Municipal da Nazaré / Câmara Municipal da Nazaré (consulte a notícia no portal da CMN) e com o patrocínio do Grupo Miramar / Hotel Miramar Sul.



Poemas de Maria da Nazaré e de Laura Caetaninha, recitados na abertura e encerramento da tertúlia.
Painéis da exposição “Nazaré no Feminino” (pdf)


Referências bibliográficas citadas:
Christine Escallier (1999), “O papel das mulheres da Nazaré na economia haliêutica”, Etnográfica, Vol. III (2), pp. 293-308.
Idem (2004), “Activités et stratégies de survie dans une communauté de pêcheurs: le rôle de la femme dans l’économie touristique (Nazaré – Portugal)“, Arte e Ciência, 2.
Inês Amorim (2005), “Mulheres no sector das pescas na viragem do século XIX – formas de participação na organização do trabalho”, Arquipélago. História, 2ª série, IX, pp. 657-680.
José Maria Trindade (2009), A Nazaré dos pescadores. Identidade e transformação de uma comunidade marítima, Edições Colibri / IPL.

José Soares (2002), “Nazaré matriarcal. Um equívoco”, Os Mitos da Lagoa”, Nazaré, pp. 81- 94.

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